terça-feira, 11 de agosto de 2015

Como flores que caem

   Me custaram alguns anos para perceber que a diferença de idade entre eu e meu irmão nunca diminuiria. Derek apresentava uma tranquilidade imensa ao responder minhas maiores dúvidas, coisa que me irritava, por vezes. Quando questionei o motivo do nome da nossa cachorra ser Daisy, ele simplesmente me disse que eu deveria conhecer melhor a literatura americana. Nada justificou essa sua postura esnobe até eu me dar conta que qualquer conduta diferente da dele me soava falsa. Eu o admirava, e isso era um segredo até para mim.
   
   Nós fomos, de certa forma, melhores amigos, por um curto período de tempo. Após as minhas tentativas frustradas de lhe acertar o rosto com um murro (na minha cabeça, ele imploraria misericórdia, e admitiria ser uma pessoa de comportamento repulsivo), Derek começou a dar sinais de que estava arrependido desse seu jeito abominável de ser. Por exemplo, quando Martha Salet lhe disse que – parece que escuto o tom anormal que ela empregou em seu aborrecimento – “Phillip é muito mais cavalheiro que você, seu estúpido!”, antes de bater a porta da entrada de casa com uma agressividade desnecessária, ele me abraçou com os olhos cheios de lágrimas. Aquilo, sem dúvida, era uma rendição mais do que justa. Perguntei quem era Phillip e ele fingiu me ignorar, com o rosto quase fundido ao meu couro cabeludo, me deixando sem muita reação. Lembrei que ele e Martha haviam ido ao cinema naquela semana para assistir um romance, e talvez Phillip fosse o nome do galã. Lhe aconselhei a não ficar se espelhando em filmes, e, se Martha queria uma vida de atriz, ela deveria, ao menos, não falar tão errado. Derek riu e me deu um beijo no rosto. Era a primeira vez que ele fazia aquilo. Após limpar minha bochecha com certa urgência, vi que havia ganhado a guerra.

   Com isso, veio nossa amizade. Derek me livrou de diversas brigas na escola, já que a maneira como ele colocava a mão sobre o meu ombro espantava uma meia-dúzia de ignorantes que insistiam em caçoar do meu pouco tamanho. Eu chegava a me divertir com ele em alguns momentos, mas ficava atento ao seu cinismo de quando ele me elogiava. Quando reparei que ele realmente estava impressionado com o que eu havia feito (certa vez, no seu aniversário, lhe dei uma miniatura de carro, em madeira, com seu nome escrito na porta do motorista, em letra cursiva), vi que esse cinismo era coisa da minha cabeça. Ou ele fingia muito bem ser uma pessoa agradável.

   Não sei dizer se ele era religioso. Íamos à missa quinzenalmente, e há quem diga que isso não é um sinal de fé indiscutível. Contudo, o fato de ele fazer o sinal da cruz quando se livrava de alguma enrascada me deixou intrigado. Seria alguma forma de escudo mental místico? Por alguns segundos, tive a certeza de que Derek não era desse planeta, além de ser um esquisito. Perguntei o motivo, e ele, mais uma vez, com a serenidade de quem acabou de adormecer, me falou que era bom acreditar, e que eu deveria fazer o mesmo. O encarei. Resolvi seguir seu conselho, mas estabeleci que isso não iria se repetir.
   
   Ele andava muito quieto. Àquela altura, a separação dos Beatles já tinha acontecido há um mês, e não poderia existir outro motivo para tanta cara feia. Um dia, sobre a nossa escrivaninha, encontrei, debaixo de uns papéis que usaria pra desenhar, um telegrama, exageradamente perfumado, em papel rosado. Desdobrei-o. A caligrafia horrível indicava a autoria de Martha. Ela dizia (ou, pelo menos, tentava):

“Quero visitá-lo até o fim do mês. Eu sinto muito. Levarei aqueles biscoitos que você gosta.”

Mal sabia ela que Daisy era a única admiradora daquela preciosa receita.

   Estávamos, então, no começo de junho, com a primavera já dando seus últimos suspiros. Tínhamos, no quintal de casa, uma flor que, por ironia de alguma força maior, também se chamava primavera. Sempre achei isso de tamanha redundância, mas como eu não tinha tanta criatividade para dar nome a flores, acabei aceitando sem reclamar muito. Derek era fascinado por elas, especialmente pela de cor vermelha, que ele adorava se gabar por ter plantado alguns anos atrás. Mas eu não o criticava por isso, até porque eu teria a mesma atitude.
  
   Um dia, na longa estrada que era do corredor até o nosso quarto (nos dias de frio era impossível andar descalço por ali), meu pai e minha mãe interromperam meus planos de ir correndo para a cama, e se agacharam para conversar comigo. Eu gelei. Com certeza eles haviam descoberto algo que nem eu sabia o que era, mas deveria ser muito ruim. Na verdade, eles só queriam dizer que Derek estava um pouco chateado e queria conversar comigo. Respirei aliviado e segui meu caminho. Não entendi o motivo daquele susto, Derek e eu ficamos juntos a tarde toda, e ele mostrou muita indiferença às minhas provocações sobre o seu novo visual. Estava carequinha, parecia que acabara de ser convocado.
  
   Chegando ao quarto, vi que ele estava com o carrinho que lhe dei, meses atrás. Olhava para o seu nome e sorria, um sorriso que nunca entendi, pois, geralmente, os sorrisos são alegres. Esse me trazia certo receio, e eu fiquei aguardando, como se aquela cena fosse a mais bonita que eu já tivesse visto. Derek pediu para que eu me sentasse com ele, e começou a me contar uma história da época em que nasci. Isso me deixou apreensivo. Aquilo parecia uma despedida, e ele sequer me falava boa-noite, muitas vezes. Escutei como se ele me contasse um segredo, encaixando cada movimento da sua boca às frases que pareciam ter sido tiradas de algum filme. Derek me fez chorar, mas, dessa vez, eu ainda não tinha um motivo. Ele revelou que estava doente, e pediu desculpa por não ter me contado antes. Eu não entendi muito bem, e não sabia se estava orgulhoso por vê-lo se desculpar. Na verdade, aquilo me deixou triste. Talvez eu não devesse, mas resolvi demonstrar um pouco de afeto e dizer que toda doença passa, é só não querer apressar as coisas. Uma semana deitado e pronto. Ele concordou, e, sorrindo aquele sorriso de novo, me beijou pela segunda vez. Por não saber que aquela seria, também, a última, não retribuí. Eu descobriria, um tempo depois, que arrependimento é uma responsabilidade muito grande.
         
   Derek continuou com o seu modo simples de encontrar soluções, e aquilo não me irritava mais. Estávamos no inverno quando ele partiu. Às vezes, me pego olhando para a sua primavera, que, há tempos, dentre todas ali, é a única que não fica um dia sequer sem o seu tom avermelhado. Foi assim que eu aprendi que as flores também sentem saudade.

Um comentário:

  1. E engraçado como só notamos o quanto algo faz falta quando reencontramos: que saudade de ler os seus textos!
    Delicado, sensível, talentoso... sempre uma surpresa encantadora!
    Saudades!

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