segunda-feira, 9 de novembro de 2015

Te sorri ao lado do limoeiro

      Àquela altura da minha infância, eu já não ignorava as coisas que não entendia, e, de algum modo, sabia que muitas delas fariam sentido em determinado momento. Eu costumava folhear uma pequena publicação regional que circulava aos domingos, e cheguei a fazer muitas descobertas que nunca me causaram grande impacto, apesar de parecerem bastante relevantes. Vez ou outra, um poeta amador tinha a oportunidade de expor alguns versos na última seção: a almejada “Ponto final”, um breve espaço dedicado às mais diversas observações dos fiéis leitores. Por um destino que, hoje, eu simplesmente aceito, encarei, com certo descaso, duas linhas atiradas ali, de forma discreta e firme. Sem enfeites ou apresentações, aquela última página de folhetim expunha o seguinte:

“Se não é dito um olhar,
Um toque, logo, é mudo.”

Não me atentei ao autor, e, provavelmente, faria o mesmo hoje em dia. Contudo, nos próximos anos, eu carregaria essa curiosidade, como se eu tivesse deixado de agradecer algum favor a um amigo desaparecido.

      Eu já havia passado dos trinta quando Aline tinha apenas dois anos. Seus cabelos lisos e nome eram iguais aos da mãe, no entanto, os olhos eram parecidos com os meus. E esses olhos corriam curiosos pelos cantos da casa, indicando que algo ali estava faltando. Percebi que fazia a mesma coisa, às vezes. No parto, sua mãe dispôs da vida para dar lugar à de Aline. Pouco antes de ceder, ela não chorava, mas suava muito, enquanto eu, em contrapartida, sentia o peso de todo tijolo de cada casa no mundo desmoronando. Com o rosto junto ao meu, ela me fez prometer que contaria histórias à criança, e eu apresentei uma resistência momentânea em fazer aquilo sozinho. Suspirava, baixinho, seu eterno amor, e eu apertei sua mão com força, certo de que isso reverteria aquela situação. Entre um beijo e um último apelo meu, Aline nasceu, e me lembrou de que eu tinha algo a cumprir.

      Após familiares, tanto os mais próximos quanto os de mais longe parentesco, deixarem bem claro a sua opinião de que eu não seria capaz de cuidar de uma criança prematura sozinho, Aline dormia em meu colo, já com quase um ano, enquanto eu agradecia, via telefone, outra oferta de “uns dois ou três meses aí, caso você precise de alguma coisa”. Por cuidar da parte financeira da empresa, trabalhava, agora, em casa, e confesso que me surpreendi com essa decisão por parte do diretor. Ao explicar a situação e o motivo de ter de pedir demissão, ele apoiou a cabeça por alguns segundos em um punho fechado, e depois de pouco tempo perdido em um pensamento, disse que sofria de insônia por não poder ter mais tempo para o filho. Durante a noite, ia várias vezes ao quarto do menino, e lhe fazia um cafuné, com cuidado para não acordá-lo. Voltando à nossa realidade, elogiou brevemente a minha forma de trabalhar, e beijou a mãozinha de Aline, que já estava um pouco impaciente.

      Quando o Sol se mostrava apenas da cintura para cima, era hora de descermos ao quintal. Sem notar, aprimorei um talento que, até então, desconhecia: eu era um exímio contador de histórias. Aline nunca deu muita atenção aos meus contos fantásticos, cheios de personagens enigmáticos e desfechos brilhantemente arquitetados. Nisso, lembrava da cara que minha esposa fazia quando lhe contava alguma piada que ela não entendia, e resolvia dar preferência a singelos animais falantes e romances variados. De qualquer forma, tentava encaixar alguma trama mais elaborada, mas a história acabava ficando sem muita qualidade. Nesse caso, era melhor se ater ao básico, mesmo.

      Ela se mantinha focada em todos os pés de frutas, e essas lhe arrancavam uma expressão de contentamento instantaneamente, caso fossem colhidas. Suas texturas e cheiros eram motivo de festa, devendo vir daí o conceito de simplicidade. Tanta alegria se converteu, certa vez, em um riso quieto, que, como onda junto à costa, marca tudo que toca. Naquele momento, me lembrei de que eu era feliz.

       Perto do seu aniversário de três anos, eu preparava nosso almoço, enquanto Aline brincava ao meu lado, na cozinha. Havíamos assistido a um filme na noite anterior, e eu estava inconformado com o final repentino e sem lógica. Concluí que ela também achou o mesmo, apenas não queria se manifestar sobre. Num descuido, esbarrei na tigela que continha a salada, que se transformou em um lençol de cacos e folhas pelo chão. Ela ignorou o acontecido a ponto de me deixar sem reação: o estrondo sequer atrapalhou a concentração quase sagrada que ela mantinha acerca de suas pelúcias. Eu, no entanto, lamentava: nada de salada para o almoço.

      Já sem a desconfiança de que os meus assuntos não eram interessantes, eu começava a ficar em dúvida em relação a algumas atitudes da pequena. Aos três anos, ela balbuciava um ou outro som, e nem a chamando pelo nome eu conseguiria um olhar em resposta. Levei-a ao médico, apesar de me recusar a pensar que a minha suspeita estava correta.

      Aline tinha um tipo de surdez profunda. Seria necessário um implante que, além dos benefícios, traria, obviamente, os riscos de uma cirurgia desse porte. Perdi os movimentos do rosto brevemente. Antes de agradecer e precipitar nossa saída do consultório, tive de me atentar à ótima interpretação de que estava entendendo perfeitamente tudo que me foi dito após o diagnóstico.

      Em casa, estávamos no balanço, como de costume, e a tarde se preparava para dormir. Minhas mãos se perdiam por entre os longos fios negros que já transpassavam o ombro de Aline. Pela primeira vez, eu estava sem criatividade. Ignorando sua incapacidade por um instante, cheguei bem perto de sua orelha e disse que a amava, como se estivesse lhe contando um segredo. Ela continuou a observar algum ponto distante. Com lágrimas que pareciam estar atravessando um muro, olhei para cima, no intuito de me desculpar com sua mãe, já que eu não havia conseguido realizar seu pedido. Como um reflexo, Aline agora me encarava, colocando sua cabeça contra o meu peito. Em sequência, espiou meu rosto através dos seus pequenos dedos, e sorriu espontaneamente. Aquele autor desconhecido, anos atrás, já havia me advertido que não se diz um olhar. Por sorte, ele não sabia como não o ouvir.

      No céu, a Lua crescia. Era quase Natal.

Um comentário: