Àquela altura
da minha infância, eu já não ignorava as coisas que não entendia, e, de algum
modo, sabia que muitas delas fariam sentido em determinado momento. Eu
costumava folhear uma pequena publicação regional que circulava aos domingos, e cheguei a fazer muitas descobertas que nunca me causaram grande impacto, apesar
de parecerem bastante relevantes. Vez ou outra, um poeta amador tinha a
oportunidade de expor alguns versos na última seção: a almejada “Ponto final”,
um breve espaço dedicado às mais diversas observações dos fiéis leitores. Por
um destino que, hoje, eu simplesmente aceito, encarei, com certo descaso, duas
linhas atiradas ali, de forma discreta e firme. Sem enfeites ou apresentações,
aquela última página de folhetim expunha o seguinte:
“Se não é dito um olhar,
Um toque, logo, é mudo.”
Não me atentei ao autor, e, provavelmente, faria o mesmo hoje em dia. Contudo,
nos próximos anos, eu carregaria essa curiosidade, como se eu tivesse deixado
de agradecer algum favor a um amigo desaparecido.
Eu
já havia passado dos trinta quando Aline tinha apenas dois anos. Seus cabelos
lisos e nome eram iguais aos da mãe, no entanto, os olhos eram parecidos com os
meus. E esses olhos corriam curiosos pelos cantos da casa, indicando que algo
ali estava faltando. Percebi que fazia a mesma coisa, às vezes. No parto, sua
mãe dispôs da vida para dar lugar à de Aline. Pouco antes de ceder, ela não
chorava, mas suava muito, enquanto eu, em contrapartida, sentia o peso de todo
tijolo de cada casa no mundo desmoronando. Com o rosto junto ao meu, ela me fez
prometer que contaria histórias à criança, e eu apresentei uma resistência
momentânea em fazer aquilo sozinho. Suspirava, baixinho, seu eterno amor, e eu
apertei sua mão com força, certo de que isso reverteria aquela situação. Entre
um beijo e um último apelo meu, Aline nasceu, e me lembrou de que eu tinha algo
a cumprir.
Após
familiares, tanto os mais próximos quanto os de mais longe parentesco, deixarem
bem claro a sua opinião de que eu não seria capaz de cuidar de uma criança
prematura sozinho, Aline dormia em meu colo, já com quase um ano, enquanto eu
agradecia, via telefone, outra oferta de “uns dois ou três meses aí, caso você
precise de alguma coisa”. Por cuidar da parte financeira da empresa,
trabalhava, agora, em casa, e confesso que me surpreendi com essa decisão por
parte do diretor. Ao explicar a situação e o motivo de ter de pedir demissão,
ele apoiou a cabeça por alguns segundos em um punho fechado, e depois de pouco
tempo perdido em um pensamento, disse que sofria de insônia por não poder ter
mais tempo para o filho. Durante a noite, ia várias vezes ao quarto do menino, e lhe
fazia um cafuné, com cuidado para não acordá-lo. Voltando à nossa realidade,
elogiou brevemente a minha forma de trabalhar, e beijou a mãozinha de Aline,
que já estava um pouco impaciente.
Quando
o Sol se mostrava apenas da cintura para cima, era hora de descermos ao
quintal. Sem notar, aprimorei um talento que, até então, desconhecia: eu era um
exímio contador de histórias. Aline nunca deu muita atenção aos meus contos
fantásticos, cheios de personagens enigmáticos e desfechos brilhantemente
arquitetados. Nisso, lembrava da cara que minha esposa fazia quando lhe contava
alguma piada que ela não entendia, e resolvia dar preferência a singelos animais
falantes e romances variados. De qualquer forma, tentava encaixar alguma trama
mais elaborada, mas a história acabava ficando sem muita qualidade. Nesse caso,
era melhor se ater ao básico, mesmo.
Ela
se mantinha focada em todos os pés de frutas, e essas lhe arrancavam uma
expressão de contentamento instantaneamente, caso fossem colhidas. Suas
texturas e cheiros eram motivo de festa, devendo vir daí o conceito de
simplicidade. Tanta alegria se converteu, certa vez, em um riso quieto, que,
como onda junto à costa, marca tudo que toca. Naquele momento, me lembrei de
que eu era feliz.
Perto
do seu aniversário de três anos, eu preparava nosso almoço, enquanto Aline
brincava ao meu lado, na cozinha. Havíamos assistido a um filme na noite
anterior, e eu estava inconformado com o final repentino e sem lógica. Concluí
que ela também achou o mesmo, apenas não queria se manifestar sobre. Num
descuido, esbarrei na tigela que continha a salada, que se transformou em um
lençol de cacos e folhas pelo chão. Ela ignorou o acontecido a ponto de me
deixar sem reação: o estrondo sequer atrapalhou a concentração quase sagrada
que ela mantinha acerca de suas pelúcias. Eu, no entanto, lamentava: nada de
salada para o almoço.
Já
sem a desconfiança de que os meus assuntos não eram interessantes, eu começava
a ficar em dúvida em relação a algumas atitudes da pequena. Aos três anos, ela
balbuciava um ou outro som, e nem a chamando pelo nome eu conseguiria um olhar
em resposta. Levei-a ao médico, apesar de me recusar a pensar que a minha
suspeita estava correta.
Aline
tinha um tipo de surdez profunda. Seria necessário um implante que, além dos
benefícios, traria, obviamente, os riscos de uma cirurgia desse porte. Perdi os movimentos do rosto brevemente. Antes de agradecer e precipitar nossa saída do consultório, tive de me atentar à ótima
interpretação de que estava entendendo perfeitamente tudo que me foi dito após
o diagnóstico.
Em casa, estávamos no balanço, como
de costume, e a tarde se preparava para dormir. Minhas mãos se perdiam por
entre os longos fios negros que já transpassavam o ombro de Aline. Pela
primeira vez, eu estava sem criatividade. Ignorando sua incapacidade por um
instante, cheguei bem perto de sua orelha e disse que a amava, como se
estivesse lhe contando um segredo. Ela continuou a observar algum ponto
distante. Com lágrimas que pareciam estar atravessando um muro, olhei para cima,
no intuito de me desculpar com sua mãe, já que eu não havia conseguido realizar
seu pedido. Como um reflexo, Aline agora me encarava, colocando sua cabeça
contra o meu peito. Em sequência, espiou meu rosto através dos seus pequenos
dedos, e sorriu espontaneamente. Aquele autor desconhecido, anos atrás, já
havia me advertido que não se diz um olhar. Por sorte, ele não sabia como não o
ouvir.
No céu, a Lua crescia. Era quase Natal.
Quando o olhar fala, a boca se cala!
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