domingo, 6 de agosto de 2017

Detalhes existem para serem percebidos

     Uma vez por semana, íamos ao ponto de encontro da turma do meu avô: o Conclave, uma mistura de café com lanchonete. Os amigos dele me chamavam de Caracol. Antes que você pense que eu era devagar ou tinha os cabelos cacheados, o apelido pegou, na verdade, por eu sempre chegar usando um casaco gigante do meu avô, que dizia ser um homem que não sentia frio. Eu gostava desse programa, mesmo não tendo muito a se fazer. Algumas partidas de xadrez eram desculpa para se passar uma manhã lembrando do passado. Caminhando até lá, ficávamos conversando, como dois amigos. O que, de fato, éramos.

– Gil, você conhece sua avó, certo?
– Sim.
– Muito bem. E eu, você acha que eu a conheço?

Em ocasiões como essa, eu me perguntava qual de nós dois era mais idiota. Mas essas perguntas óbvias tinham uma sabedoria gigantesca escondida em seus mais minúsculos espaços e pontos de interrogação, e era um risco que eu assumia ao responder essas perguntas com respostas também óbvias. O ser humano brinca com a comunicação, e a gente nem se dá conta disso. Lá no fundo, eu sabia que essa pergunta tinha uma finalidade. O gostoso era não fazer ideia qual.

– Ué, sim?
– Claro que sim. Afinal, são trinta e... trinta e quanto, mesmo?
– Eu sei lá, vovô.

Trinta e quatro. Os dois sabiam a resposta. Ele queria me testar, e eu fingia não me importar. Se existia um roteirista pra essas nossas conversas, ele era muito enrolado.

– Bom, trinta e tanto. Gil, a sua avó gosta do café a exatos dois dedos do fundo do copo americano. Ela nunca mediu, nem nunca me disse isso. Um dia, por curiosidade, enquanto ela esperava o bendito esfriar um pouco em cima da pia, cheguei perto, como quem não quer nada, fiz assim – ele estendeu o indicador e o dedo do meio –, e voilà: dois exatos dedos. Acredita nisso? Faço o mesmo de vez em quando – traduzindo: todos os dias –, e sempre é esse mesmo tanto – mostrou os dedos de novo – de café. É loucura, não é?

Você já deve imaginar que, àquela altura, eu estava, no mínimo, curioso. Ele continuou:

– Quando ela toma banho, o sabonete não fica pra lá e pra cá, como um cachorro perdido. Não, senhor – ele sorriu com uma expressão indescritível, um sorriso de quem não acha algo realmente engraçado. Era o tipo de sorriso de quem acabou de notar alguma coisa, algo como "é, eu errei a entrada". Enfim, um sorriso muito específico –. O sabonete, aquele rosa, que ela adora, fica total e exatamente na mesma posição. Como se ela estendesse a mão e simplesmente o soltasse, mas com uma precisão inacreditável. Entende? Na minha cabeça, isso deve ser planejado, porque a marca dele na saboneteira nunca se moveu um centímetro sequer. Pode olhar, você vai ver que não estou mentindo.

Eu olhei, mesmo. Ele estava certo.

– De qualquer forma, esse não é o ponto. O que eu quero dizer é que existem detalhes por trás dessas pequenas coisas. Detalhes que, muitas vezes, não reparamos, mas fazem parte da vida de uma pessoa. Hoje você não entende, e talvez nem ligue muito para o que eu vou te dizer, mas é provável que você nunca conheça alguém por completo. É verdade. Quando eu achei que não tinha mais o que aprender sobre a sua avó, vi que estava perdendo muita coisa. Todos esses detalhes que nem ela percebe. E detalhes existem para serem percebidos, Gil. Nem que você os ache inúteis. Se eles realmente fossem, eu nem estaria te falando isso.

     Aquele mesmo roteirista, se lançasse um filme, agora tinha a cena onde todos se surpreendem ao constatar que essa é uma verdade absoluta. Como eu era apenas uma simples personagem de pouca idade, não tinha o que dizer. E nem sei se tinha entendido muito bem, mesmo. Nessas horas, a gente escuta e não tenta inventar a resposta certa. Fico pensando como seriam alguns acontecimentos se já soubéssemos como eles se desenrolariam. Tudo seria uma expectativa tão óbvia. Uma constante e ansiosa espera por momentos que deveriam acontecer da melhor forma possível. Como seriam os primeiros beijos? Ser o melhor não significa ser inesquecível.

     No Conclave, sentava ao lado do meu avô durante as partidas de xadrez. Fui aprendendo uma coisa ou outra do jogo, algo que aprimorei com o passar dos anos. Há muitos que ele fechou as portas, mas, vez em quando, ainda encontro um entusiasta do tabuleiro. Costumo jogar atento, mas, ainda assim, sempre encontro um adversário que, com a boca cheia, quase declama um orgulhoso e enfatizado "xeque!". Ao rever as jogadas (e essa revisão pode levar um certo tempo), vejo que aquilo poderia ter sido evitado. E por mim. Não foram as peças que se moveram sozinhas, do nada. O difícil é errar sem saber que estamos errando. Detalhes existem para serem percebidos, mas também carregam consigo o direito aos cabelos brancos. Todos esses anos me pegaram de surpresa, estou ficando velho. Experiência, maturidade, vivência, bem, independente do nome, são consequências incessantemente arquitetadas, direta e indiretamente por nós. Existe um controle de coincidências? E pra onde vão os finais alternativos? Talvez rugas e calvície não sejam apenas sinais de envelhecimento: algumas lembranças marcam além da memória. E elas precisam de algum lugar no corpo.

– Vamos, vovô.
– Eu não sei, Gil. É que hoje... sabe, hoje eu estou com tanto frio.

Um comentário:

  1. Olá, João Paulo! Por favor, agora eu entrei no blog pra lhe pedir que entre em contato comigo, via messenger: Heloísa Helena Zachello. Obrigada! Deus te abençoe!

    ResponderExcluir