quinta-feira, 22 de agosto de 2019

primeiras manhãs

nick carraway,
narrador da história do grande gatsby,
me ensinou uma lição importante com a seguinte afirmação:

"na verdade, eu acabei de me lembrar. hoje é meu aniversário."

nessa ideia de não fazer muita cerimônia
para coisas exageradamente pequenas,
decidi passar minha primeira manhã
naquela charmosa padaria com varanda
que ficava virando à esquina

um primeiro dia numa cidade nova
não exige algo exatamente memorável,
mas ele é inevitavelmente inesquecível,
eu sabia disso

e foi sabendo disso que, ao chegar lá,
achei muito inteligente querer sanar a dúvida
se aqueles milhões de fios de cabelo
pertenciam a quem eu achava que pertenciam

os roteiros de hollywood mostram um desenrolar de fatos,
em geral, inconcebíveis,
mas esse, como tudo que é demasiado real,
parecia mentira

cheguei e levantei os cinco dedos,
um por um, e o retorno deles ao lugar de origem
foi acompanhado pela expressão mais carregada de desdém
da qual eu já tive a oportunidade de experimentar

quase imperceptivelmente ela balançava a cabeça,
pra lá e pra cá,
e um lábio descrente revelava alguns dentes
que amorteciam um riso ainda disfarçado

 o que você tá fazendo aqui? tipo, aqui?

as sobrancelhas dela franziam
enquanto eu respondia qualquer idiotice
foi quando eu notei
que ela não ouviu quase nada do que eu disse

acendeu um cigarro e riu na minha cara. e eu nem sabia que ela fumava

 quando você sumiu e se fez de desentendido eu comecei a achar que todo mundo era parecido com você... *primeiro trago* ...como se, do nada, todas as pessoas estivessem se esforçando pra ter o seu rosto, o seu cabelo... e até essa merda desse seu olhar de quem não tá entendendo nada... *segundo trago*...

deduzi que aquela frase ia doer,
e como uma criança que toma coragem,
enche o peito,
e diz que está pronta para receber a vacina,
tentei fingir que não tremia

em horas como essa
é engraçado como é aceitável
mentir para nós mesmos

um terceiro trago
veio longo e calmo,
o sorriso que era um tiro,
cínico e atordoante,
e o foco de visão distante
ou, pelo menos,
longe o bastante

*soltando fumaça*
...  mas foi aí que eu percebi
que não eram todos que eram parecidos com você,
e sim você
que era parecido com todos

que sensação estranha
é a de procurar alguma resposta
mas todas elas
soarem completamente irrelevantes

 é seu o café pra viagem?, uma simpática e abençoada moça rugia uma interrupção entre os quilométricos segundos de silêncio que ali estavam instaurados

 é, sim. obrigada!

tirou a tampa
e a lambeu por baixo

 hm, eu adoro esse sabor que fica. parece que gruda na língua.

deu o gole mais gostoso
naquele expresso longo encorpado,
um gole em que os olhos fecham
e ficam, assim, fechados

após isso, enquanto abriam,
o sorriso desaparecia,
e o olhar cínico, atordoante e distante
ajustava seu foco e arrebentava o meu,
como um golpe certeiro de boxe

 tá gostando da cidade,
seu filho da puta?

Um comentário:

  1. Amei pode começar a pensar em escrever livros e séries, o jeito que vc descreve cada detalhe me faz entrar de cabeça no texto, da a impressão que estou vendo a cena in loco!!!! Uauuuuuuuu

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