sexta-feira, 25 de outubro de 2019

ossos de ouro

toda criança é uma poetisa até que lhe digam que ela não é

 o que é poetisa?, perguntava, apontando para o quadro

 é o feminino pra poeta. como se fosse atriz e ator, sabe?

 acho que sim.

eu converso com essa pessoa,
e tenho noção de que ela está doente
às vezes, só nos damos conta de que estávamos
passando por uma fase ruim
algum tempo depois
que esse período terminou

trazendo essa ideia, recebo, de imediato, o troco:

 eu só acho injusto ficar sem saber enquanto isso não passa.

algumas respostas parecem uma excelente campanha de desarmamento,
e os argumentos que caem no chão são balas que acabaram de ser usadas, sem acertar o alvo,
e eles fazem até um barulho de metal,
como se fossem pequenos sinos

 você sabe um problema que eu tenho, doutor?
eu copio os jeitos que gosto
das pessoas que acho demais,
e o que vou te falar agora vai parecer maluquice,
mas acho que você tá acostumado, né?

eu tenho ossos de ouro, doutor.
é algo que eu sinto, porque...
porque a cada pessoa
que passa pela minha vida,
eu sinto como se ela, aos poucos,

fosse se tornando meus músculos,

e a minha pele,

e todas as veias do meu sistema sanguíneo,

junto ao sangue que por elas passam,

elas viram as minhas roupas,

e o meu jeito de conversar.

parece que eu, uma coisinha tão pequena,
vou tomando forma,
como um pão que assa e cresce,
e assim surge o meu corpo,
e como meu corpo sou eu,
é assim que eu nasço, também.

minha boca fica brevemente inquieta,
eu amo quando conheço um pensamento assim tão rico
ela continua:

 mas você percebe, doutor,
que essas pessoas viram tudo
menos os meus ossos
ou o tutano dentro deles?
e é por isso que eu tenho certeza que eles são de ouro

sabe naqueles filmes antigos
que alguém morde uma moeda
pra ver se ela não é falsa?

quando me arrancam as roupas
e rasgam minha pele,
quando me descolam os músculos
e os levam pra longe,
só sobra um esqueleto, magro e sem vida,
mas, na minha cabeça, ele brilha dourado,
porque é tudo que eu tenho
quando não tenho mais nada.
aí eu só tenho a mim

e por mais que eu peça, e por mais que eu implore,
quando eu caio de joelhos,
os meus ossos não amassam.
é por isso que eles são verdadeiros,
eles são de ouro.
e estão enterrados lá no fundo,
tem hora que eu até esqueço.

volto atrás, e não sei mais se essa pessoa está doente,
parece algo que apenas demorou muito
pra ser colocado em palavras

nem tudo precisa de tanto tempo pra funcionar como deve

 poetisa... até agora há pouco eu nem sabia o que era isso...
...e pensar que eu sempre quis ser uma.

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